Adeus ao generoso: despedida de Jorge Ramos reúne multidão e evoca memórias do jornalismo baiano

Conheça o perfil do jornalista, pesquisador e professor que morreu na última quinta-feira (4)

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  • Larissa Almeida

Publicado em 6 de abril de 2024 às 06:00

Despedida do jornalista Jorge Ramos Crédito: Paula Fróes/CORREIO

No mês em que iria completar 69 anos, o jornalista, pesquisador, escritor e professor Jorge Ramos faleceu após sofrer um infarto enquanto se exercitava na manhã de quinta-feira (4) e deixou para trás uma multidão consternada. Sem espaço no caderno de visitas do Cemitério Jardim da Saudade, onde seu corpo foi cremado, foi preciso improvisar uma nova lista para dar conta dos registros das inúmeras pessoas que queriam dizer o último adeus. Isso tudo porque, para além da extensão e variedade do seu currículo, Jorginho – como ficou conhecido – era um agregador de pessoas. Não à toa, um dos seus momentos favoritos era quando reunia familiares e amigos para visitar o presépio que montava todos os anos na sua casa.

“Ele era tão apaixonado por aquele momento de encontrar e congregar as pessoas através do ato do presépio no final do ano que isso mexia com ele o ano todo. [...] O que nós estamos presenciando aqui hoje é um encontro, porque está todo mundo aqui. Como estava perto de fazer 50 anos de jornalismo, ele foi um formador de pessoas profissionais e de seres humanos. Ele tinha que dividir os dias lá no presépio para todo mundo ir”, conta Antonio Pastori, compadre e pupilo de Jorge Ramos.

O vínculo com o presépio surgiu por influência da avó de Jorginho, que tinha o costume de montar um todos os anos e convidar a família para ver a representação do nascimento de Jesus Cristo. Os valores transmitidos e os ensinamentos cristãos foram continuados pelo jornalista, que agora deixou um legado ainda maior para seus filhos.

“O presépio é a história de vida da família, a qual ele deu sequência e tem um significado cultural, histórico e familiar muito precioso que pretendemos dar seguimento. Sempre foi um pedido dele para que nunca deixássemos o presépio para trás. [...] Para ele, Jesus Cristo era realmente a razão de ser, da vida e do mundo dele. Também pautava sempre as suas atitudes em vida. Então, ‘Amai ao próximo como a ti mesmo’ era algo que ele levava para o dia a dia, para a profissão e para casa”, ressalta a filha Desireé Ramos.

No lar que dividia com sua esposa Aninha Ramos e onde criou os filhos Desireé e Diego, a expressão desse amor ia além do afeto e da escuta, e se traduzia no compartilhamento de conhecimento. Era Jorginho o dono das respostas sobre o motivo do céu ser azul até o esclarecimento do que é inflação, dúvidas surgidas em Desireé ao longo da vida. “Ele era presente em tudo. Desde pequena, respondia as pequenas e as grandes dúvidas sempre com o jornal na mão, me ensinando coisas sobre economia, política e outros processos que fui agregando na minha vida. Meu pai foi essa pessoa que agregou muita coisa imaterial a mim, um legado que o tempo não vai dar conta porque transcende”, pontua.

Vocação histórica

Talvez pela convicção a respeito da eternidade da marca de Jorge Ramos, quem se reuniu para vê-lo uma última vez teve dificuldade para falar dele no passado. E enquanto uns misturam os tempos verbais, outros rememoravam os tempos da história cujos fatos Jorginho se debruçava a estudar e a passar incansavelmente aos seus pupilos nas mais diversas redações por onde já trabalhou na Bahia – início na profissão no extinto jornal Diário de Notícias, passagens pelas TVs Bahia, Aratu, Bandeirantes, Santa Cruz, de Itabuna e Educativa. Esse foi o caso da jornalista Fernanda Carvalho, que lembra de um ensinamento dado com muito bom humor por aquele que considerava um mestre.

“Eu fui estagiária de Jorginho na TV Aratu há 22 anos e ele era uma pessoa que ensinava muito e com bom humor. Numa época de Páscoa, no espelho de pauta das matérias que iriam sair no dia seguinte, ele pediu que eu pautasse a Missa dos Santos Óleos, mas eu escrevi a ‘Missa dos Santos Olhos”. Na hora, ele deu uma gargalhada na redação e disse ‘já se viu que você não é católica’ e me ensinou tudo sobre a missa. Eu tenho muita honra de tudo que aprendi com ele, porque não era só conhecimento técnico, mas principalmente de ética jornalística e de valores que levo para minha vida”, destaca.

Linda Bezerra, editora-chefe do Jornal Correio, define como honra ter sido contemporânea de Jorge Ramos. “Ele era uma pessoa íntegra, honesta, muito ligado na cultura da Bahia e foi um professor não só de jornalismo, mas sobre a beleza da Bahia”, frisa.

Já Fernando Guerreiro, presidente da Fundação Gregório de Mattos, Jorginho era, acima de tudo, um ser humano excepcional “Passou por todos os setores do jornalismo e da cultura, em Salvador. Era naturalmente, muito comunicativo, simpático, empático. Deixa órfãos, milhares de seguidores. Um professor nato, que sempre estava disposto a dividir, ensinar... Um exemplo de ser humano, que vai deixar saudade”, afirma.

Além do conhecimento jornalístico, ele era admirado pela vocação cultural e histórica. Inclusive, o amor de Jorge Ramos pela História se confunde com sua origem. Desde a data do seu nascimento – dia 22 de abril, dia da chegada dos portugueses ao Brasil – até suas andanças pelo Recôncavo Baiano, tudo convergiu para seu vínculo com as narrativas históricas do Brasil, mas sobretudo da Bahia. Mesmo tendo como berço o município de Ipirá, foi às margens do Rio Paraguaçu, mais especificamente em Cachoeira, que Jorginho viveu parte da vida, conheceu a esposa Aninha Ramos e criou elos intelectuais que serviram, mais tarde, para apresentar a cultura da Bahia a quem quisesse conhecê-la.

Uma dessas pessoas foi o jornalista Cristiano Gobbi, que veio do Rio Grande do Sul para o território baiano sem saber ao certo como retratar a Bahia e teve a mão de Jorge para se apoiar. “Jorginho foi quem me acolheu e foi me ensinando as primeiras coisas da Bahia. Ele era uma pessoa apaixonada pelo estado e que sabia muito sobre. Eu vi uma pessoa falar nas redes sociais que Jorginho poderia falar até das palmeiras do Campo Grande. Ele valorizava a cultura e eu me identifiquei com isso, porque eu estava chegando e querendo fazer uma imersão nessa cultura”, fala.

“Ele compreendeu isso e me ensinou. Eu tinha muito interesse em conhecer o candomblé, então ele me dava livros, me apresentava a pessoas com quem eu poderia conversar. Ele passou uma parte da vida em Cachoeira e também tinha muito interesse nisso. Ele adotava quem se interessava”, acrescenta.

Trajetória fora das redações

A sina por estudar lhe rendeu trabalhos na educação. Como professor, lecionou Metodologia e Didática do Ensino Superior na Faculdade São Bento, da Bahia, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e na Faculdade Dois de Julho, em Salvador. Também lecionou jornalismo, em Angola.

Jorginho também teve trajetória fora das redações e da sala de aula. Foi subsecretário de Comunicação da Prefeitura de Salvador e trabalhou na Assessoria de Imprensa de diferentes órgãos públicos baianos, entre os quais O Teatro. Em 2011, publicou pela Solisluna Editora o livro “O Semeador de Orquestras – História de um Maestro Abolicionista” sobre a vida e a obra do maestro baiano Tranquilino Bastos.

Durante a vida, também acumulou cargos representativos. Foi ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado da Bahia (Sinjorba). Atualmente, Jorge ocupava o cargo de diretor da Biblioteca Ruy Barbosa do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) e era segundo-secretário da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).

Amália Casal, jornalista, psicóloga e primeira-secretária da ABI, esteve presente na despedida e relembrou as habilidades do amigo. “Jorginho sempre me impressionou pela capacidade e carisma que ele tinha de se relacionar com gente e de fazer as coisas com leveza, profundidade e sabedoria que ia tocando e encantando a gente. Ele é um exemplo para todos nós e vai fazer muita falta”, diz.

Amigo de longa data e colega de trabalho em diversas ocasiões, o professor do curso de Jornalismo da Facom/Ufba Washington Filho se emocionou ao falar de Jorginho enquanto recordava a eleição do então jornalista para assumir o Diretório Acadêmico do curso de Jornalismo da Ufba, que à época ainda era vinculado à Biblioteconomia. Ao citar a coragem do amigo em aceitar o posto durante a ditadura militar, Washington não conteve as lágrimas. “A gente passou a achar a capacidade que ele tinha de reunir as pessoas fantástica e passou a chamar ele de Tancredinho por causa de Tancredo Neves”, lembra ele.

Lado a lado, os dois também fizeram parte da primeira turma que fez comandou o jornalismo televisionado da Bahia e, ainda, casaram com suas respectivas esposas no mesmo ano, marcando presença na cerimônia um do outro. “Foi uma satisfação muito grande ter sido amigo e ter convivido com Jorginho. É uma pessoa que fez parte da minha vida, em alguns momentos, até mais do que meus irmãos”, completa.

Generosidade

“Só ele poderia reunir tanta gente de tantas épocas e de tantos lugares diferentes. Ele foi meu primeiro chefe de reportagem. Além de amigo, foi um professor e era, naturalmente, muito generoso e parceiro. Era uma pessoa que conseguia, mesmo com todo estresse da televisão, ser meigo”, define Claudiane Carvalho, jornalista e professora da Facom/Ufba.

Junto com a generosidade que entregava, vinha a exigência da responsabilidade. Certa vez, quando trabalhava num telejornal apresentado na TV Aratu, Cristiano Gobbi brincou que estava embriagado e que não poderia trabalhar, uma hora antes da programação ter início. Como resposta, ouviu gritos irritados de Jorge, que logo se aquietou quando ele revelou a brincadeira. “Era muito divertido trabalhar com ele. A gente brigava muito por telefone, mas quando chegava na redação saíamos para lanchar juntos. Às vezes ele era irritado, mas não deixava isso prevalecer”, diz Gobbi.

Foi com essa leveza que a jornalista Rita Maia, que trabalhou com ele na TVE, afirma ter mudado sua concepção acerca do jornalismo. “Quantas eu vezes eu pensei em desistir porque achava que o jornalismo tinha que ser feito sob estresse. Quando eu cheguei na área, me assustava muito porque as redações pareciam ter uma necessidade imensa de se exaltar, mas quando eu tive o privilégio de ter sido comandada por Jorge Ramos, eu vi que poderia fazer um bom trabalho de outro jeito, porque ele tinha boa vontade, calma e serenidade. Ele tinha um hábito de sempre me cumprimentar com um beijo na testa. Era uma amorosidade incrível”, lembra.

A máxima expressão desse carinho na vida profissional talvez tenha sido personificada na sua relação com a comadre Carla Araújo. Isso porque, de colegas de profissão, os dois se tornaram membros de uma mesma família. “Ele batizou Matheus, meu filho, éramos amigos desde sempre. Ele foi meu chefe e, como a maioria, eu aprendi com ele. Ele era meu mentor, fazia as vezes de tudo na minha vida. Era pai, conselheiro, amigo, absolutamente tudo. No começo da minha carreira, eu era uma jovem repórter mãe e tinha dificuldade de com quem deixar meu filho quando não tinha uma rede de apoio. Ele passou muito tempo com Matheus, e isso foi uma vida inteira”, conta, com a voz embargada.

O afilhado Matheus Pastori, também tomado pela emoção, exaltou a vida e o legado do padrinho. “A cada conquista que eu tinha, meu padrinho, Aninha, Diego e Desireé estavam ali. Essa perda é algo que sabíamos que podia acontecer, mas para mim é inconcebível, porque meu padrinho sempre esteve ali. Eu acho que o jornalismo baiano perde não apenas um jornalista dedicado, um amante, respeitador da profissão e preservados da história da Bahia, como um dos pilares do nosso jornalismo atual. Foi ele quem deu oportunidade a muita gente que está aqui e eu tenho muito orgulho de dizer que ele era meu padrinho”, finalizou.

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro